(de Lucy Walker. Waste Land, Inglaterra/Brasil, 2010) Documentário. Cotação: *****
Antes de qualquer coisa, devo ressaltar que "Lixo Extraordinário", documentário indicado ao Oscar deste ano e vencedor de Festivais importantes como Sundance e Berlim, está além de um documento cinematográfico. É uma verdadeira experiência sentimental capaz de nos fazer dar valor ao que muitos não se dão ao direito de sentir. Serve como protesto, um grito de excluídos que estão à deriva, mas que aos poucos passam a perceber que têm o seu valor. Eles são catadores de lixo do maior aterro sanitário da América Latina, localizado no Jardim Gramacho, Rio de Janeiro. Essas pessoas são as responsáveis pela comprovação de que é possível fazer com que a arte desempenhe um papel social que muitas vezes soa como uma utopia.
Sim, utopia. No início do filme, o artista plástico Vik Muniz introduz "Lixo Extraordinário" se apresentando de uma forma até mesmo arrogante. Ainda na primeira tomada, podemos ver Jô Soares apresentando seu característico programa e chamando pra entrevista alguém que ele considera “um dos maiores artistas plásticos da atualidade”, numa bajulação até mesmo gratuita, como se precisasse do Jô para confirmar a magnitude de seu nome. Vik, ainda nos primeiros minutos do filme, diz que sua intenção em trabalhar num lixão brasileiro é principalmente mudar a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, num limite geográfico onde se briga com urubus para tirar o sustento. E a dificuldade da tal tarefa é pequena tendo em vista o grande valor humanitário da sua idéia.
O talento reconhecido de Vik Muniz logo é apresentado de forma eficaz. Suas obras são de uma beleza visual impressionante, chegando até mesmo ao ponto de ser ilustrado, agora de forma mais sutil (não descarada) o grande artista que ele é, com uma história de superação, saindo de sua vida humilde em São Paulo para ganhar as galerias de artes de Nova York. Chegando ao Rio, já no temível aterro no Jardim Gramado, "Lixo Extraordinário" passa a ser outro filme, ganha uma beleza. Forma-se aí um das mais belas lições que aquelas pessoas aprenderão. E nós – com certeza – aprendemos muito mais.
Em meio às montanhas de lixo, surgem as figuras que nós mesmos não damos o devido valor até nos questionarmos a importância deles: os catadores de lixo. Aliás, catadores de lixo não, catadores de materiais recicláveis (!). São eles os responsáveis pela proteção da natureza, evitando que a degradação ambiental seja um problema menos devastador do que poderia vir a ser. Somos apresentados a Tião, Zumbi, Isis, Suelen, entre outros que, mesmo com uma vida tão sofrida e que muitos nem se imaginariam em tal situação, levam a vida conformados o quanto podem, por vezes felizes e até mesmo orgulhosos por estarem fazendo um trabalho digno.
A proposta de Vik é fazer das imagens mais simplórias um molde para uma obra artística moldada através do próprio lixo recolhido no aterro e selecionados pela associação responsável por representar os catadores. Tião (Presidente da Associação de Catadores do Jardim Gramacho), que logo demonstra uma curiosidade admirável por aventurar-se em ler Maquiavel e Nietzsche, protagoniza uma releitura da famosa pose de morte do revolucionário Marat na banheira, assassinado por Charlotte Corday (obra de Jacques-Louis David). E a partir daí, outros nomes são retratados de igual maneira, participando ativamente da produção dos trabalhos artísticos.
E a transformação - que antes parecia tão ingênua ao ser discursada por Vik Muniz na introdução - acontece diante de nós.
Quem antes tinha até vergonha de seu trabalho, passou a ter orgulho. Pessoas desacreditadas, sofridas, passaram a ganhar seu merecido valor, e o principal, ganharam voz. Seus rostos foram parar em Londres, sendo admirados por intelectuais em museus, dividindo espaço com Basquiat e sendo leiloados juntamente com peças de Andy Warhol. E o mais bonito é ver a reação deles diante do sucesso, com gratidão nos olhos e dizendo “fui eu que fiz”. Isso é sinal de que a intenção de Vik Muniz foi completada com sucesso e de maneira edificante. Com isso, até esquecemos o Vik Muniz do inicio da projeção (o que se vangloria de seu sucesso) e conhecemos o lado humano do artista. E coube a ele o papel de fazer a mudança que lhe cabia.
"Lixo Extraordinário" é certamente um dos mais belos trabalhos do ano. Visto para gringo ver, é verdade (até as conversas entre Vik com seu braço direito Fábio ou com sua esposa, todos brasileiros, são faladas em inglês). Mas num conjunto, trata-se de um sentimento nobre: a arte com seu devido valor social. E isso, deve ser interpretado e apreendido de maneira universal.
Um documentário comovente, Adecio. Gostei muito.
ResponderExcluirAbraços,
www.ofalcaomaltes.blogspot.com
Não achei tão bom quanto você, mas com certeza é um filme importante e emocionante.
ResponderExcluirAinda não assisti ao filme, mas minha curiosidade se mantém. Quero ver esse ar arrogante do Vik do início e sua transformação.
ResponderExcluirPS: andei visitando teu blog e gostei muito do que vi. parabéns.
adicionei nos meus links!
Abraços
Correção importante:Charlotte Corday foi a assassina de Marat e não a pintora do quadro. O autor do quadro foi Jacques-Louis David, expoente artista e revolucionário do período neoclássico.
ResponderExcluirMarina
ResponderExcluirObrigado pela correção! Grande falta de minha parte!
Grande abraço!
Olá, querido Adécio,
ResponderExcluirGosto muito do seus posts, e de vez em quando uso trechos no meu site, que fala do olhar psi em alguns filmes. Esse filme, em particular, mexeu muito comigo por conta da minha abordagem, gestalt-terapia, que trabalha principalmente com o processo. Ao utilizar muitas referências já publicadas na net, inclui alguns trechos seus. Infelizmente, não citei todas as fontes, ao que peço desculpas, e estou corrigindo agora. Certamente, publicando tb seu comentario, abraços
Querido Adécio,
ResponderExcluirPrimeiro quero elogiar seus posts e pedir desculpas por ter utilizado trechos deles em meu blog, especialmente quando não o cito, o que estou corrigindo agora. Como disse no post referido a esse filme, levei mais de uma semana para reunir informações que fizessem juz a experiência em si, especialmente que conferissem o olhar gestáltico (abordagem psicológica que sigo). Ainda ssim estou publicando seu comentário, que registra sua indignação. Obrigada e desculpas, de novo!
abraços
www.psicologiaecinema.com
Meu caro, excelente leitura do documentário.
ResponderExcluirGostaria apenas de ressaltar que o quadro que Tião protagoniza é chamado MARAT, e não Murat.
Abraço!