sexta-feira, 24 de junho de 2011

Amores Imaginários [2010]


(de Xavier Dolan. Les Amours Imaginaires, Canadá, 2010) Com Monia Chokri, Niels Schneider, Xavier Dolan. Cotação: ****

Confesso que Xavier Dolan me impressiona. E muito. O rapaz de apenas 22 anos já conseguiu se estabelecer no meio do cinema artístico, levando os dois de seus principais filmes (este e o anterior “Eu Matei Minha Mãe”, de 2009) para o Festival de Cannes, sendo ovacionado também em outras premiações e festivais no mundo afora. Não é para menos, o cara tem talento, embora possua uma estética restrita e faça parte do rol desses diretores que surgem de vez em quando (o exemplo mais forte que tenho é Quentin Tarantino) que são acima de qualquer coisa, cinéfilos inveterados, que abusam de homenagens, tributos, referências, etc. em suas obras a fim de darem maior valor artístico a elas. Para mim, isso não é (e está longe de ser) um defeito.

Passado na parte do Canadá onde falam um idioma francês quase incompreensível até para os próprios franceses, os amigos Marie (Chokri) e Francis (Dolan, que além de diretor e roteirista, também assume o papel de protagonista) não poderiam imaginar que a amizade seria abalada por um amor em comum: o jovem Nicolas (Schneider). Por conta da ambigüidade de Nic (fica incerto se ele é hétero, gay, bissexual, mente aberta), os dois iniciam um constante jogo de conquista, cada vez mais expostos e que vai afetando de forma negativa a amizade entre os dois. Marie e Francis alimentam um amor platônico (não confundir com o verdadeiro conceito de amor do filósofo Platão), e mesmo que se entreguem a outros parceiros sexuais, suas cabeças estão sempre aludindo à Nicolas.

Muitos já sabem que eu não sou grande apreciador de “Os Sonhadores”, filme de 2003 do diretor Bernardo Bertolucci. “Amores Imaginários” tem uma premissa bem parecida, embora os protagonistas sejam os dois interessados, enquanto no filme de Bertolucci, a história era centrada no objeto de desejo, Matthew. Aliás, as referências são fortes não só em Bertolucci, mas também de François Truffaut (1932-1984), Jean-Luc Godard, além da maneira asiática de desenvolver belíssimos planos em câmera lenta ao som de uma trilha sonora underground, que dá para “Amores Imaginários” um enriquecimento cool. Até as cores berrantes podem remeter à Pedro Almodóvar e a utilização da música “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” tem ligação direta com “Kill Bill – Vol. I” do Tarantino. São tantos meios de evidenciar técnicas visuais afetadas e um desenho estilístico fashionista, que “Amores Imaginários” corre o risco de ser apreciado somente no circuito gay.

O que gosto bastante no filme (embora tenha sido muito criticado) são os depoimentos de pessoas aparentemente triviais falando sobre desilusões amorosas, que é o tema maior do filme. São de uma espirituosidade que me divertiu bastante, funcionando para salientar esse campo de discussão, que levados aos personagens, não funciona por si só, pois são pessoas passivas e que empurram atitudes mais cobradas para frente. Não é querendo estragar nada, mas é esperado que pessoas tão sentimentais quanto eles não esperem grande coisa como resultado (um amor recíproco, por exemplo). Pelo menos é a impressão que se dá desde o início do filme, que possui um final que de tão irônico, salva o terceiro ato com louvor.

“Amores Imaginários” é um filme restrito, infelizmente. E é também um ótimo exemplo para mostrar que o estilo muitas vezes sobressai.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Halloween - A Noite do Terror [1978]


(de John Carpenter. Halloween, EUA, 1978) Com Jamie Lee Curtis, Donald Pleasence, Nancy Kyes, P.J. Soles, Kyle Richards. Cotação: *****

Eu terminei de assistir “Halloween” com aquela convicção de que John Carpenter é O cara, mesmo não sendo levado a sério na maioria das vezes. Ele, praticamente sozinho, escreveu um roteiro que ele idealizou – nesse caso, em companhia de sua colega fiel Debra Hill (1950-2005), além de ter produzido, dirigido, ter composto a famosíssima música tema do filme. Inclusive, é dele a voz do namorado de uma das personagens que é ouvida no telefone. Foi graças a esse entusiasmo que ele conseguiu levantar esse filme com um orçamento risível para a época, mas que conseguiu a proeza de se tornar um dos filmes mais lembrados do terror, fazendo escola e sendo reconhecido até hoje como um clássico obrigatório do gênero.

Nos anos 60, um crime choca a pacata cidade de Haddonfield, em Illinois. Uma adolescente é brutalmente assassinada com golpes de faca. O criminoso? Nada menos que Michael Myers, o irmão caçula da vítima, um garoto de apenas seis anos de idade. Levado para o Sanatório Smith Groove, ele passará 15 anos sob supervisão do Dr. Loomis (Pleasence), até que em 1978, ele consegue fugir e retornar para Haddonfield. A cidade segue a tradição do Halloween, com crianças batendo de porta em porta perguntando “doces ou travessuras?”, abóboras sendo esculpidas e adolescentes descobrindo os prazeres das festinhas particulares. Mas a chegada de Michael poderá acabar com a animação desses jovens, principalmente da colegial Laurie (Lee Curtis).

Os elementos que John Carpenter utiliza em “Halloween” são responsáveis pelo título de genialidade que o filme tombou. A música, mesmo causando a óbvia sensação de inquietude, com apenas algumas notas criadas de prontidão pelo diretor, é apenas um exemplo que posso citar para confirmar a qualidade da obra. As tomadas são ousadas, com planos extensos e ângulos que podem parecer chavões no terror (como o assassino aparecendo atrás das mocinhas), mas que aqui são feitos de uma maneira tão correta, que a sua finalidade é manifestada com sucesso. Pois se a intenção é criar tensão. John Carpenter consegue com maestria.

A cidade quase inóspita (o orçamento apertado não possibilitou a contratação de figurantes) com a visão típica do outono é outro componente que se deve levar em consideração para o bom terror. A máscara do serial killer (que alguns até nem sabe que foi baseada no rosto de William Shatner, astro de “Star Trek”) se tornou um sucesso, figurinha acertada em qualquer baile de Halloween até hoje. A decisão de não mostrar a face do psicopata também garante a tensão do filme. Elencar todos os elementos não é algo difícil, afinal, até uma criança pode saber quais são os lugares comuns do terror. Mas, usá-los com moderação e eficácia, é tarefa que muito marmanjo não consegue ou nem sabe como faz.

A paixão de John Carpenter pelo terror foi responsável até pela escolha de Jamie Lee Curtis – aqui uma estreante de apenas 20 anos – para o papel principal. Seria influência do mestre Alfred Hitchcock (1899-1980), que deu à Janet Leigh (1927-2004), mãe de Jamie, um papel igualmente importante no clássico “Psicose”, de 1960.

Toda essa boa construção em prol do bom exemplar do terror reserva até mesmo um ponto importante. Quase não há sangue no filme, nem violência desnecessária para a condução da história. Relacionando com todas as reanimações dos filmes de terror juvenil que vão ocorrendo nos anos subseqüentes (na realidade, esses filmes nunca chegaram nem perto de morrer), é fácil dizer a imposição de cada vez mais violência visual aliada à sensualidade vista nas telas. Não que eu seja contra sangue e sexo (que segundo Tarantino, é o que torna o cinema divertido), mas “Halloween”, mesmo se tratando de um serial killer que se sente afrontado por essa sexualidade, não toma isso como um principal atrativo. Tudo faz parte de uma boa condução de suspense.

Ainda bem que, graças a fama que o filme carrega até hoje - que o confirma como um verdadeiro clássico - não chega a ser difícil que as pessoas reconheçam o que eu falei nesse texto.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Dzi Croquettes [2009]


(de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Idem, Brasil, 2009) Documentário. Cotação: ****

O que me faz pensar bastante sobre esse documentário (até agora um dos nacionais mais premiados) foi sobre a questão desafiadora do projeto encabeçado pela atriz Tatiana Issa e seu amigo de longa data, Raphael Alvarez. Residentes de Nova Iorque, eles projetaram praticamente sozinhos esse filme com o intuito de resgatar a memória de um grupo teatral de grande importância da cena artística carioca nos anos setenta, que conquistou grandes êxitos tanto aqui, quanto na Europa. Mas como um grupo de 13 homens que deram oportunidade para aflorar outros movimentos artísticos já nos anos 80 foi esquecido quase que completamente? Essa é uma questão que paira em todo o decorrer desse belo documento.

Dzi Croquettes (uma brincadeira com o artigo “the” e o fato de serem carnes comestíveis, portanto, croquetes) foi um grupo teatral liderado pelo americano Lennie Dale, um coréografo americano radicado no Brasil que se juntou com outros doze homens para reinventar a contracultura com um grupo andrógino. Apresentavam um espetáculo com irreverência, humor, dança e teatro. Pressionados pela repressão militar através de perseguições políticas, rumaram para a Europa, a fim de terem melhores espaços. Não foram compreendidos em Portugal e boicotados pela imprensa na França, mas graças ao apoio de Liza Minnelli, que se tornou madrinha do grupo, a alta sociedade conheceu as ousadas e incríveis apresentações dos rapazes, e assisti-los se tornou a coqueluche de Paris.

Fina ironia. Não existe termo melhor para designar Dzi Croquettes. Fizeram de uma maneira única peitar as repressões políticas de forma inteligente e sagaz. Eram homens que, apesar da homossexualidade escancarada, não faziam disso um subterfúgio para comporem um universo gay restrito, afinal, seus espetáculos poderiam ser assistidos e conseguiam emocionar qualquer pessoa suficientemente esclarecida para entender o que aqueles homens queriam passar. O grupo, que teve início em 1972, ano do primeiro espetáculo, acabou de forma banal por conta de uma briga interna. Dos 13 integrantes, 5 estão vivos, 4 morreram em decorrência da AIDS (até então uma doença desconhecida, chamada de “câncer gay”), 3 foram assassinados na Europa de forma brutal e até hoje não resolvida e um por conta de aneurisma.

Contando com vários depoimentos - dentre eles Elke Maravilha, Miéle, Gilberto Gil, Nelson Motta, Marília Pêra, Ney Matogrosso, Jorge Fernando, Cláudia Raia, Miguel Falabella, Pedro Cardoso, Liza Minnelli, Betty Faria, as Frenéticas, além dos remanescentes, Claudio Tovar, Ciro Barcelos, Bayard Tonelli, Rogério de Poly e Benedito Lacerda - “Diz Croquettes” remonta todo o sucesso da companhia que tinha como característica visual a força da feminilidade (com muitos glitter e plumas) representada por homens que não tolhiam suas características masculinas, o que intrigava muita gente.

Infelizmente, “Diz Croquettes” acaba caindo muitas vezes no engrandecimento gratuito e apelando para adjetivos que vão se repetindo e soam exagerados demais por um ou outro depoente, ao longo de um filme que exagerou um pouco no seu tempo de duração. Apesar de contestável no começo, as inserções de Tatiana Issa em primeira pessoa acabam ganhando uma finalidade condizente e emocionante apenas na conclusão, até porque ela tem propriedade e razões honestas para contar a história desse grupo que graças a ela e de uma rede de televisão alemã responsável pelo único registro em vídeo do espetáculo feito na França, tiveram sua memória devidamente resgatada. Um trabalho de admirável contribuição cultural.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A Bela da Tarde [1967]


(de Luis Buñuel. Belle de Jour, França, 1967) Com Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti. Cotação: ****

O sexo, academicamente falando, é uma prática natural e que deve ser respeitada em toda a sua expansão, pois não há limites para e não consta ‘anormalidade’, desde que a vontade das duas partes seja respeitada e que seja mantida a integridade de ambos. O que reprime o sexo é, sem sombras de dúvidas, a sociedade. É através dessa questão tão convidativa para a discussão que Luis Buñuel se utiliza de seu surrealismo característico para enlaçar o fetiche, algo que é representado tanto por ele (através de suas maneiras de trabalhar) quanto pela personagem principal.

Séverine (Deneuve) é uma jovem de 23 anos. Casada com o cirurgião Pierre Serizy (Sorel), ela é frígida sexualmente por conter uma apreensão social fortíssima. Ao saber que uma conhecida sua virou uma “dama de companhia”, satisfazendo desejos masculinos e ganhando dinheiro, Séverine fica atordoada com essa possibilidade. Vai então a procura de Madame Anais (Page), uma mulher sofisticada que mantém um apartamento aberto para visitas de homens finos em busca de companhias femininas (não sei porque, acho anacrônico dizer “programas”, mas enfim, dá no mesmo). Batizada de “Bela da Tarde”, por ficar apenas no período vespertino disponível no recinto de Madame Anais (os cabarés característicos da França, com suas luzes vermelhas e mulheres burlescas já não são comuns após o fim da Segunda Guerra), Séverine consegue destaque, o que poderá complicar ou ajudar sua relação íntima com o marido.

Baseado na novela de Joseph Kessel (1898-1979), “A Bela da Tarde” é um mergulho na consciência da personagem Séverine, que foi levada ao encantamento do sexo vendido por conta de sua atração pela mão forte masculina e sua passividade (nos seus pensamentos eróticos, ela sempre está submetida ao sexo forçado com estranhos). É atitude que apesar de extrema, se torna seu meio de satisfação imediata. A obra muitas vezes pode ser confusa para os que não aceitarem que tudo ali se trata ora das ações de Séverine, ora a consciência dela. Em algumas cópias, as legendas do filme chegaram a ser formatadas em itálico para diferenciar o que era realidade e o que era a consciência da personagem. Uma afronta para a inteligência e capacidade de reflexão do espectador, que afeta diretamente na força do enigmático desfecho da obra.

“A Bela da Tarde” não poderia ter tido um diretor melhor. Buñuel é um idealizador da mente humana convicto. Só ele poderia passear pelo interior feminino de maneira tão elegante e alucinadora. Sua característica mais marcada nesse filme é definitivamente os takes de pés femininos (ele é um podólatra convicto), funcionando como agrado para evidenciar a beleza de Catherine Deneuve, que está deslumbrante. O filme tem um quê de Nelson Rodrigues, aliás, é uma obra que certamente está ligada no processo criativo do dramaturgo brasileiro, mesmo que indiretamente. É daqueles filmes que mesmo tendo sido realizado há décadas, ainda é capaz de enaltecer a sexualidade de forma muito atraente.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

História Real [1999]


(de David Lynch. The Straight Story, EUA, 1999) Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Jane Galloway Heitz, Everett McGill. Cotação: *****

Na apresentação dos letreiros de “História Real”, eu confesso ter ficado admirado com o duo Walt Disney-David Lynch. O diretor, como todos sabem, é adepto do “fazer cinema pelo bizarro”. Seus filmes contêm uma carga mórbida e absurda, que podemos ver em “O Homem Elefante”, “Cidade dos Sonhos” e na minissérie “Twin Peaks”. Por isso, ter um filme família em seu currículo não é só uma surpresa, mas também admirável por ter condições profissionais de mostrar que é possível ousar. Engraçado é que no caso de Lynch, “ousar” é ser mais convencional, entregando para nós uma obra pequena, singela e direta. Não se submete às emoções vendidas, é um exemplo do que pode se tornar uma boa história real em um filme respeitável.

Numa pacata cidade de Iowa, um estado do Centro-Oeste americano, vive Alvin Straight (Farnsworth) com sua filha Rosie (Spacek). Alvin está com 73 anos e com grandes dificuldades de se locomover por conta de seus problemas nos quadris, mas é teimoso o suficiente para recusar andadores (é um desses velhinhos americanos que lutaram na guerra e que não demonstram sinais de vulnerabilidade). Ao receber a notícia que seu irmão Lyle - com quem não fala há dez anos – sofreu um derrame, ele decide fazer uma viagem solitária de 510 km até Winsconsi, para ver seu irmão mais uma vez. Sem ter outro meio de viajar até lá (não possui carteira de motorista e não confia em ônibus), ele decide partir a bordo de seu cortador de grama. No caminho, irá se deparar com olhares admirados e se encontrar com uma grávida errante, um grupo de ciclistas e famílias dispostas a ajudá-lo.

Antes de qualquer coisa, “História Real” toma a velhice como um meio de construir uma ponte de emoção com o espectador. Alvin – interpretado de maneira BRILHANTE por Richard Farnsworth – é um homem que não gosta de estar submetido, que os outros se compadeçam com suas condições de saúde ou adversidades que terá em sua viagem. Ele quer terminar seu trajeto à sua maneira, como uma forma de engolir seu orgulho e fazer algo por uma pessoa que ele ama e que por uma década ele se manteve afastado. “O pior da velhice é lembrar-se da juventude” diz Alvin em certa altura do filme ao ser questionado sobre o lado ruim de ser velho. O verdadeiro Alvin (1920-1996), segundo sua biografia, tinha de fato essa natureza. Sua viagem, acontecida no ano de 1994, durou cerca de seis semanas.

O filme garante sua excelência na construção do personagem principal. De maneira bem dosada, são reveladas as nuances de Alvin – e QUE nuances. Obviamente, não me cabe contar o que passou em sua vida e assuntos que tratam de infelicidades e culpas. Mas essas revelações vão ser prioritárias para um belíssimo elo em que se forma entre nós e Alvin. Chega a ser extremamente poético. É claro que “História Real” exagera em certos momentos ao querer mostrar a benevolência do povo americano, sempre dispostos a ajudar seus compatriotas e abraçar uma causa tão bela como é a de Alvin. Mas esses momentos são tão orgânicos no filme, que pouco me incomodei com esse fato, apesar de ter percebido essa intenção.

Devo também dedicar um parágrafo para Richard Farnsworth. O filme é simplesmente ELE. Indicado ao Oscar de Melhor Ator em 2000 por esse filme – antes havia sido indicado em 1979 por “Raízes da Ambição” -, Richard foi capaz de entregar um trabalho digno que infelizmente se tornou o seu último. No dia 6 de outubro de 2000, ele se suicidou com um tiro na cabeça em sua fazenda no Novo México. Richard havia sido diagnosticado com um câncer terminal desde as filmagens de “História Real”. Em minha opinião, esse triste fato contribui ainda mais para a percepção de uma aura que é subsistente em Alvin e Richard.

Escrito por John Roach e Mary Sweeney (produtora constante de Lynch), “História Real” infelizmente não conquistou o reconhecimento que lhe cabia. Mas uma das grandes belezas do Cinema, é que suas obras possam ser sempre redescobertas por seus admiradores e acabam se tornando uma fita de prestígio.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Contatos Imediatos de Terceiro Grau [1977]


(de Steven Spielberg. Close Encounters of the Third Kind, EUA, 1977) Com Richard Dreyfuss, François Truffaut, Teri Garr, Melinda Dillon, Bob Balaban. Cotação: *****

Estamos falando aqui de um Steven Spielberg que surgia como o grande nome do blockbuster americano. Somente no final dos anos 70/início dos 80, ele lançou “Tubarão” (75), “Os Caçadores da Arca Perdida” (81) e “E.T. – O Extraterrestre” (82). Ele é também o melhor exemplo para afirmar que nem sempre blockbuster é sinônimo de qualidade discutível, que visa lucro acima de qualquer comprometimento mais “artístico”. Spielberg foi talvez o único cineasta capaz de brincar com o desconhecido e como isso afeta os seres humanos, transformando a emoção como principal meio para descaracterizar um objeto de temor. Seja um extraterrestre ou um tubarão, o principal recurso que ele faz uso para dar essa devida tensão é ora as reações de seus personagens, ora artifícios muito bem alinhados do cinema (a trilha sonora é a mais óbvia). “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é um exemplo irrefutável.

Estranhos acontecimentos estão sendo vivenciados ao redor do mundo. No Deserto de Sonora e no de Gobi, aviões da Segunda Guerra e uma embarcação em ótimo estado reaparecem do nada em meio à areia. No controle de Tráfego Aéreo de Indiana, surgem objetos não identificados em seus monitores. E em cinco municípios dali, pessoas passam por experiências impressionantes, tendo contato com ÓVNIS. Dentre elas, o eletricista Roy (Dreyfuss), que fica obcecado pela visão de uma montanha, assim como o pequeno Barry, e sua mãe Jillian (Dillon). A equipe de pesquisa liderada pelo francês Claude Lacombe (Truffaut) sai em busca de uma forma de contato (que se daria através de uma comunicação tonal) com os seres estranhos, enquanto as pessoas afetadas pela visão da montanha (ou as cinco notas em escala menor que as naves tocam) tentam descobrir o que significam essas coisas.

“Contatos Imediatos de Terceiro Grau” certamente é o melhor filme sobre essa questão da ufologia. Tudo bem que parte de uma situação positiva, onde o contato entre humanos e extraterrestres se daria de uma forma pacífica. Ainda assim, o clímax tão bem trabalhado por Spielberg deságua em um final excelente, assim como todo o filme. É ótimo quando assistimos a um longa onde o trabalho do diretor exerce seu fim de maneira completamente eficaz. Brinquedos se fazem assustadores, crianças e seu encantamento com o não-natural ou brigas familiares que não saem de seu propósito. São todas contribuições para dar veracidade ao tema tratado ali. São pontos positivos que jamais podemos deixar de notar.

A trilha sonora de John Willians, o gigante músico, está infalível. E o que dizer do trabalho de Richard Dreyfuss? Excepcional! A participação de François Truffaut como ator é não só uma grata surpresa, como reserva momentos emocionantes, envolvendo os sinais de Zoltan Kodály. A união de diversos elementos, dando cada vez maiores atribuições para a forma (a montanha de Wyoming) e o som (as cinco notas de comunicação) é o que torna esse filme um exemplo DO QUE É o cinema de Spielberg. È uma pena em que hoje em dia, de fato, filmes encomendados para obtenção de lucro descarado possuam, em muitos dos casos, comprometimento técnico, mas poucas vezes, não contenham uma carga de emoção. Emoção de verdade, aquela em que nos mantém atônitos, ansiosos. Aquela que nos faz ter prazer e orgulho de amar o cinema em todas as suas extensões.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Vermelho Como o Céu [2006]


(de Cristiano Bortone. Rosso Come il Cielo, Itália, 2006) Com Luca Capriotti, Marco Cocci, Simone Colombari, Francesca Maturanza, Paolo Sassanelli. Cotação: ****

O cinema italiano já nos provou que existem meios de garantir a aceitação pública da forma mais honesta possível. Conhecer a história Mirco Mencacci, um dos editores de som mais respeitados do Cinema italiano já denota um filme praticamente pronto. E foi ao conhecê-lo na produção de seu filme “Sono Positivo”, de 1999, que o diretor Cristiano Bortone decidiu, de uma forma orgânica e tradicional, levar a história do então colega para as telas. O resultado, com todos os ingredientes dramáticos possíveis, agradou o público de maneira geral merecidamente, pois estamos falando de um país que tem cacife para trabalhar emoção, superação e cinefilia de forma carismática. Não tem como não agradar.

O drama de Mirco Mencacci (aqui interpretado pelo jovem Luca Capriotti) teve inicio no verão de 1970, quando ao manusear um velho rifle de seu pai (em uma cena que já mostra uma tragédia anunciada), sofre um acidente que o deixa cego. Na época, as crianças nessas condições não eram aceitas em escolas tradicionais, até que os pais de Mirco não encontram outra escolha a não ser enviá-lo ao centenário Instituto religioso somente para garotos deficientes visuais. Inconsolável por não poder mais ir ao cinema (era fã assumido de faroestes) e ter que aprender a viver em uma nova realidade, Mirco conta com a amizade da filha de uma funcionária, Francesca (Maturanza), as aulas do professor Don Giulio (Sassanelli) e um velho gravador usado para descobrir uma nova forma de se encantar com o cinema.

Uma grande frente de discussão que o filme nos dá é a forma como as crianças do Instituto Cassioni são tratadas. Tido como um centro de referência para acolher essas crianças, o lugar é apresentado de uma forma metódica, onde os garotos passam por sacrifícios religiosos, como ter que carregar biscoitos por horas sem poder comê-los, para reter os desejos da gula; passar por aulas de tecelagem, educação física e oratória; possuir regras de comportamento e respeitar horários impostos. Se for possível dizer que existe algo positivo nesse ambiente, certamente está na forma da valorização sensorial que os meninos passam (o que deve acontecer na verdade em qualquer escola). Mirco é perguntado pelo professor: “Você tem cinco sentidos. Por que usar somente um deles?”. Inicia-se daí uma nova forma de envolver-se com a natureza, sem fazer necessário o uso da visão.

“Vermelho Como o Céu”, como disse, tinha tudo para ser mais um desses filmes edificantes que eu tenho certo desprezo. Mas, para minha surpresa, reserva bons momentos, como a bem humorada convivência entre os meninos do Instituto, a produção de uma fábula e a homenagem emocionante que o diretor Cristiano Bortone faz ao Cinema. Cinema este que foi responsável pelo renascimento de Mirco. É quase um novo “Cinema Paradiso”. Além de contar com um elenco formado por garotos que são verdadeiros achados e seqüências inspiradas, como quando Mirco explica de forma sinestésica para um colega como são as cores primitivas.

Em contrapartida, a maneira episódica como é narrada a história já demonstra a facilidade de conseguir grande comoção dos espectadores, investindo inclusive numa paixonite infantil desnecessária e uma manifestação como pano de fundo que soou desmontada na obra, embora seja importante para o desfecho e para o contexto histórico e cinematográfico, que insere o autoritarismo comum nesse tipo de produção. Isso sem contar o maniqueísmo que fica evidente na figura do gestor, que sendo também deficiente visual, ao dizer “a liberdade é um luxo, que nós cegos não podemos ter” já demonstra uma unidimensionalidade quase imperdoável, um exagero que chega até a ser bem comum em produções baseadas em fatos reais. São dramatizações, que fique bem claro.

O fato é que o público abraçou “Vermelho Como o Céu”, que obteve destaque em festivais afora, inclusive aqui em São Paulo, onde venceu o prêmio da audiência no Festival Internacional em 2006. Mas o principal mérito do filme, a meu ver (com o perdão do trocadilho), é a conclusão trazida de que “enxergar” está para além de “olhar”, e que a cegueira não deixa de possuir suas formas particulares.