sexta-feira, 15 de julho de 2011

Tudo Sobre Minha Mãe [1999]


(de Pedro Almodóvar. Todo Sobre Mi Madre, Espanha, 1999) Com Cecilia Roth, Marisa Paredes, Candela Peña, Antonia San Juan, Toni Cantó, Penélope Cruz. Cotação: *****

Dos filmes de Almodóvar que contém um tom mais sério e folhetinesco em suas auras, esse é talvez o mais querido pelos fãs e críticos. Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, “Tudo Sobre Minha Mãe” parece ter sido lapidado pelo diretor/escritor por anos, tamanha a qualidade das tramas que envolvem o longa. Não é de impressionar, já que Almodóvar é especialista nesse aspecto. Suas histórias são profundas, vão no cerne da sensibilidade humana, numa visão romantizada sobre a força da mulher enquanto pessoas com total força para decisões na vida. Não é a toa que o filme é mais uma grande homenagem – dentre inúmeras que o diretor já fez - a elas.

Em Madri, a enfermeira Manuela (Roth) decide presentear seu filho, no seu aniversário de 17 anos, com uma ida ao teatro para ver a peça “Um Bonde Chamado Desejo”, estrelado pela diva do teatro, Huma Rojo (Paredes). Tragicamente, o rapaz acaba sendo atropelado enquanto esperava conseguir o autógrafo da atriz. Abalada com a morte prematura de seu único filho, Manuela parte para Barcelona, onde fugira quando estava ainda grávida, para dar a triste notícia ao pai do garoto. Chegando lá, fortes figuras irão juntar-se a ela, como a freira Rosa (Cruz), e a travesti Agrado (San Juan), além da própria Huma Rojo, que será ajudada por Manuela em sua vida pessoal.

Almodóvar trabalha, de forma peculiar, a questão dos opostos da vida nesse filme. Manuela, ao regressar para Barcelona, se dá conta que está num caminho inverso, indo para um lugar onde antes havia fugido. Agora está em uma busca. Mas o que seria essa busca? Somente encontrar o pai de seu filho? Juntar-se novamente com a realidade? Superar a tragédia? De fato, não importam as respostas dessas perguntas de imediato. O que é interessante em “Tudo Sobre Minha Mãe” é a dinâmica que ela vai encontrar em Barcelona em companhia de outras mulheres com uma situação igualmente delicada. O que fica marcada na cena onde elas, mesmo com graves problemas (até Agrado, afinal, a vida que ela leva não é nada fácil), ainda se juntam para beber, falar asneira e dar gargalhadas.

O destaque fica por conta da atriz Antonia San Juan, notável atriz transexual espanhola que interpreta Agrado. Sua versatilidade é tamanha, que não deixamos de nos divertir em praticamente em todas as cenas em que ela participa, mesmo que em algumas exista alguma bizarrice ou um drama que é logo amenizado por sua rápida linguagem. Almodóvar homenageia não somente as mulheres, mas também “os homens que interpretam mulheres”, e claro, as divas Bette Davis, Gena Rowlands e Romy Schneider. Falando em Davis, as referências a “A Malvada” de 1950, são vistas por mais de uma vez no filme.

“Tudo Sobre Minha Mãe” é agradável, como era esperado. Trata-se de um exemplo do que se tornou Almodóvar para os cinéfilos, já que muitos o conheceram a partir desse filme, eu inclusive me incluo nesse grupo. Dificilmente desagrada, e é - como não posso deixar de dizer - de uma sensibilidade tão forte, que somente Almodóvar poderia deixar transparecer de forma tão delicada em seu texto.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

O Iluminado [1980]


(de Stanley Kubrick. The Shining, EUA, 1980) Com Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers. Cotação: ****

Stanley Kubrick jamais poderia imaginar que iria comprar um briga feia com o escritor Stephen King e os fãs deste, tudo por conta da sua abordagem particular que fez para a obra homônima do consagrado “mestre do terror”, que batia recordes de vendas na época do filme. O fato é que “O Iluminado” é bom justamente pela temática que Kubrick escolheu e desenvolveu lindamente. Não é um terror escrachado e o medo que nos causa é por conta da natureza psicótica de seu protagonista. Aliás, protagonista somente do filme, pois no livro, a questão principal é outra (o “poder” do menino, que está inserido entre os “the shinings”, vem daí o título). Kubrick parece não estar nem um pouco preocupado com isso, fez (e muito bem) um terror psicológico à sua maneira. E o resultado? Uma obra prima do suspense.

O escritor Jack Torrance (Nicholson) está animado com uma nova oportunidade de emprego. Ele se dispõe para ficar, juntamente com sua esposa, Wendy (Duvall) e seu único filho, Danny (Lloyd), responsável pelos cuidados e manutenção do hotel Overlook durante cinco meses, no inverno que fará com que as estradas que circundam o lugar fiquem fechadas por conta da nevasca. Jack vê nesse isolamento a oportunidade para escrever seu novo romance, mas o lugar é marcado por uma tragédia ocorrida anos antes, quando um funcionário que ficou com o mesmo trabalho, numa espécie de colapso resultante da situação claustrofóbica do lugar (ele teria sido vitimado da chamada “febre da cabana”) matou com golpes de machado sua esposa e filhas pequenas, suicidando-se logo depois. Jack não se importa com a história e parte para o hotel, e dentro de um mês, aparece nele os primeiros sinais de inquietude, além de outros estranhos acontecimentos que apavoram o misterioso lugar.

Jack Nicholson está perfeito no papel, embora muitos o considerem aqui overacting, sendo melhor ter sido escolhido um ator com menos “cara de louco” para impressionar ainda mais. Mas o que importa é que Jack nos reserva cenas ontológicas como seu monólogo no bar, ou principalmente, seu inesquecível "Here's Johnny!", com uma cara sinistra na porta que acabara de ser aberta a machadadas (vide o pôster do filme aí em cima). Os exageros faciais esdrúxulos ficam por conta de Shelley Duvall, que conseguiu tirar Kubrick do sério, como bem mostra um documentário lançado por Vivian Kubrick, filha do mestre, na mesma época do lançamento de “O Iluminado”. O ator mirim Danny Lloyd também é fundamental para a dramatização, mas talvez não tenha gostado da experiência, não quis seguir a carreira de ator e hoje é professor universitário.

As críticas contra Kubrick não está em relação somente na adaptação particular da obra de King. Ele chegou, inclusive, a ser indicado a pior diretor no Framboesa de Ouro de 81 - Shelley Duvall também foi indicada a pior atriz, mas acabou perdendo para Brooke Shields, pelo insuportável “A Lagoa Azul”. Mas ao que parece, não levaram em consideração as excelentes tomadas que ele faz, como o a câmera acompanhando o pequeno Danny andando em seu triciclo pelos longos corredores do hotel, e a elegância na apresentação dos cenários grandiosos, como quando o casal Torrance chega no dia do fechamento do Overlook. Fora as tomadas aéreas durante as viagens, que nos preparam para o clima de isolamento do hotel, que fica num lugar praticamente inalcançável durante o rigoroso inverno.

Os elementos que nos espantam são muito bem pontuados, como o elevador que deságua sangue, as aparições das gêmeas e da velha na banheira. Além da ambientação perfeita do quarto 237 e do bar - onde acontece uma festa à la anos 20 – e a reconstituição de um labirinto sinistro na área verde do hotel. Tudo isso funcionaria tão bem se não estivesse em mãos profissionais como as de Kubrick? Difícil dizer se sim ou se não, mas para os que preferem um terror mais violento, com animalidades e mais fiel ao livro, o próprio Stephen King colaborou para uma adaptação em 97, que é preferida por seus fãs, porém ficou longe da marca que Kubrick deixou na adaptação de 81.

As artimanhas para nos deixar com aquela dúvida do que é real e o que é resultado da loucura que afeta Jack Torrance fazem a nossa cabeça no decorrer de “O Iluminado”, que vai ficando ainda mais sinistro com essas demonstrações de loucura do protagonista.

É tensão do inicio ao fim.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Juno [2007]


(de Jason Reitman. Idem, EUA, 2007) Com Ellen Page, Michael Cera, Jennifer Garner, Jason Bateman, Allison Janney, J.K. Simmons, Olivia Thirlby. Cotação: ****

“Juno” é, de cara, um dos filmes mais indies de 2007. Vez ou outra surgem esses filmes independentes, descolados, que caem na graça do público e das premiações. Foi o caso de “Pequena Miss Sunshine” (2006), e mais recentemente, “Minhas Mães e Meu Pai” (2010). O sucesso do filme foi tão grande que, dos seus quatro concorrentes ao Oscar de melhor filme em 2008, nenhum conseguiu ser tão rentável nas bilheterias. As razões parecem ser óbvias. Não é sempre que aparecem comédias juvenis realmente inteligentes, escritas por uma mulher que havia se tornado campeã de vendas com seu primeiro (e polêmico) livro, e claro, o carisma de Ellen Page, estrelando um de seus primeiros trabalhos importantes.

A colegial Juno MacGuff (Page) não poderia estar passando por uma situação pior. Com apenas 16 anos, ela descobriu estar grávida de seu melhor amigo, o tímido e inexpressivo Paulie Bleeker (Cera), após uma única transa. Sem saber como lidar com a situação, ela cogita um aborto, que é logo descartado por conta da fatídica informação de que fetos já possuem unhas. Busca então um casal para quem possa doar a criança quando nascer, acreditando que, dessa forma, estará fazendo uma ação realmente altruísta. Encontra o anúncio dos recém casados Mark (Bateman) e Vanessa (Garner) numa revista de classificados. Mas para isso, ela terá que contar o acontecido para seu pai, Mac (Simmons), e sua madrasta, Bren (Janney)

Quando disse que “Juno” é extremamente indie, eu não estava exagerando. Com sua introdução gráfica, diálogos abarrotados de referências e humor àcido, objetos como telefones em forma de sanduíche, e trilha sonora que contém presença de bandas como The Moldy Peaches e Belle & Sebastian (os pseudo-cults tiveram orgasmos com a trilha, que também virou sucesso de vendas), “Juno” assim se confirma como um marco para os estilosos em seu ano de lançamento. Tudo isso não faz com que o filme seja ruim. É, nas melhores das hipóteses, um dos melhores desse gênero que vem crescendo a cada ano nos EUA, sempre com fortes moldes cools.

O roteiro de Diablo Cody (vencedora do Oscar de melhor roteiro original - ver o perfil dela aqui) é o grande coringa. Polêmica, a ex-stripper monta sua história baseando-se em suas próprias referências, o que confunde a própria Juno em alguns momentos, já que seria incabível que uma garota de 16 anos pudesse ter a língua ferina e as reflexões críticas que a garota possui, ao mesmo tempo em que, querendo se dar conta de que Juno é uma personagem, Diablo tenta a fazer frágil e infantil em outros momentos, algo que fica mais acertado na metade do filme para o final. Juno pode até ter bom gosto cultural (é fã de Stooges e The Runaways, e considera Dario Argento o mestre do horror), mas também é insegura a ponto de dizer "eu não sei muito bem qual o tipo de garota eu sou". Parte da culpa da boa imagem que Juno tem é de Ellen Page, que já havia chamado a atenção em seu filme de dois anos antes, “Hard Candy”.

Enquanto Juno fica nesse meio termo entre a genial e patética, outras duas personagens me agradam bem mais. São os casos de Vanessa, interpretada com surpresa por Jennifer Garner, e Bren, a madrasta de Juno. Por motivos diferentes, as duas entregam as melhores cenas e os trabalhos mais convicentes de suas intérpretes (destaque também para o ótimo J.K. Simmons). Vanessa é a figura que mais cresce no filme, ganhando facetas mais surpreendentes e um final realmente emocionante. E Bren, ao contrário do que possa parecer, não é uma personagem passageira, tirando as melhores conclusões e concedendo os melhores conselhos (reais, eu diria) para sua enteada, que é tão imatura que parece não entender “a dinâmica de um casamento”. Eu poderia até dizer que o personagem de Jason Bateman também ganha facetas, mas ele acaba se tornando vítima de alguns preconceitos em relação aos nerds que Diablo não hesita em esconder.

Seria ótimo que filmes como “Juno” surgissem mais vezes no cinema. É um filme extremamente pretensioso, isso é inegável, mas é marcante. É aquela uma hora e meia que passa voando, e no final, sempre deixa fieliz a quem assiste.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Apocalypse Now [1979]


(de Francis Ford Coppola. Idem, EUA, 1979) Com Martin Sheen, Marlon Brando, Robert Duvall, Frederic Forrest, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Harrison Ford, Dennis Hopper. Cotação: *****

Foram aproximadamente quatro anos que o mestre Francis Ford Coppola levou para concluir esta que é um de suas obras-primas. Nesse meio tempo, ele enfrentou as intempéries de uma produção desse nível, como o alto custo que foi completado do seu próprio bolso, o desgaste físico e emocional, e o narcisismo de Marlon Brando, que se negava a colaborar com seu texto, além de fazer exigências de foco por conta da sua obesidade. O trabalho de Coppola rendeu. E o resultado é simplesmente um dos melhores filmes de guerra já produzidos na história do cinema (talvez o melhor no contexto da Guerra do Vietnã), e segundo o próprio diretor, “este não é um filme sobre o Vietnã. Este filme É o Vietnã”.

Baseado livremente na obra “Coração das Trevas” (1902) de Joseph Conrad (1857-1924), “Apocalypse Now” retrata o horror da guerra do Vietnã (1969-1975) sob a perspectiva do Capitão Benjamin L. Willard (Sheen), que após uma temporada solitária em Saigon, é procurado pelo alto comando do exército para uma missão inesperada. Ele terá que partir para o Camboja em busca do Coronel Walter E. Kurtz (Brando), um desertor que estaria montando uma milícia em meio à mata vietnamita. Willard parte para a missão a bordo de um barco com outros combatentes, que ele considera “jovens roqueiros com o pé na cova”. Enquanto segue a viagem, enfrentando todos os tipos de perigos, ele investiga a fundo a história de Kurtz, que teria feito uma carreira praticamente exemplar.

A guerra não teria um modo mais explícito de ser retratado como é aqui em “Apocalypse Now”. A temática, na verdade, nunca chegou a envelhecer, afinal, estamos tratando de uma situação onde os americanos (costumeiramente patriotas) estão impondo seu domínio de uma forma insana. Do repúdio aos vietcongs à idolatria do seu poderio bélico, os personagens são um retrato de uma geração que, de fato, existiu e ainda faz questão de se mostrar existente. O personagem de Robert Duvall (fantástico no papel), o Coronel Bill Kilgore, é capaz de dizer que adora “o cheiro de napalm pela manhã”. A razão parece ser óbvia, napalm - para ele - é resultado direto da vitória e supremacia americana.

Mas as conseqüências desastrosas da guerra (além da dizimação de sociedades inteiras, é claro) podem ficar para os próprios americanos que estão dentro dela. Os soldados enfrentam um grau de estresse tamanho, que mal se dão conta da crueza de suas missões. “Apocalypse Now” é excelente, principalmente, por nos convidar para o desconhecido, tanto para nós, quanto para os próprios personagens principais. A insanidade daquela situação, além de todos os momentos de extrema tensão, sem saber o que estará por vir, é uma das maiores provas da atemporalidade desse filme, pois ainda sabemos que o desconhecido, nesse contexto, não é fácil de ser mostrado de uma forma perturbadora.

Mas o que seria a insanidade da guerra? Por que Kurtz teria partido para “métodos irracionais”? Coppola, durante todo o filme, mostra que métodos irracionais estão por todos os lados numa guerra. A falência do humanitarismo não seria algo exclusivo do Coronel Kurtz. Ele simplesmente chegou num ponto onde todos nós poderíamos chegar, como bem aponta um dos personagens. Todos nós temos nossos limites, Kurtz apenas chegou ao seu. Teria ele enlouquecido? Ou apenas percebeu que durante toda sua carreira, tudo o que ele fez foi servir a uma causa sem fundamento algum? Perguntas como essa vão ficando cada vez mais pertinentes de acordo com que o filme vai se aproximando do seu final.

Além de todas essas discussões, “Apocalypse Now” ainda é uma aula de técnica cinematográfica. Não é preciso analisar muito. Basta assistir cenas de bombardeio ao som de “Cavalgada das Valquírias”, do compositor Richard Wagner (1813-1883), ou se atentar na fotografia espetacular de Vittorio Storaro, que faz uso das cores quentes para aquele ambiente. Além da trilha sonora espetacular, que se inicia com uma das seqüências mais memoráveis do filme, ao som de “The End” da banda The Doors. E claro, o trabalho visceral de Martin Sheen, num papel que foi disputado entre Nick Nolte, Harvey Keitel, Jeff Bridges, dentre outros. Algo que não saiu barato. Por conta do impacto das gravações, Sheen chegou a sofrer um ataque cardíaco. Algo até menos impressionante se comparado ao próprio Coppola, que tentou suicídio três vezes (!). Por sinal, “Apocalipse Now” possui tantas histórias de bastidores, que acabou resultando num documentário lançado em 1991, dirigido pela esposa de Coppola. Ele, aliás, lançou em 2001 uma versão Redux da obra, contendo quase uma hora a mais de cenas inéditas.

Fica difícil não ficar com “Apocalypse Now” na cabeça após assisti-lo. São tantas razões para considerá-lo, no mínimo, um dos documentos mais realistas de seu tempo, que pouco nos resta senão dizer que Coppola deixou uma verdadeira aula DO QUE É fazer cinema.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Carne Trêmula [1997]


(de Pedro Almodóvar. Carne Trémula, Espanha, 1997) Com Javier Bardem, Francesca Neri, Liberto Rabal, Ángela Molina, José Sancho, Penélope Cruz. Cotação: *****

Em meados dos anos 90, Pedro Almodóvar era até então conhecido como um dos poucos cineastas capazes de criar um universo folhetinesco e bem humorado em seus filmes, com personagens femininas surreais, como é mostrado, por exemplo, em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” de 1998. Mas foi a partir de “Carne Trêmula” (a maioria dos cinéfilos poderão dizer que foi com “A Flor do Meu Segredo”, de dois anos antes) que Almodóvar emprega uma mão mais madura, com um sentimentalismo aflorado através de histórias que custamos a acreditar, tamanha a inteligência nas formas como ele enlaça seus personagens, numa trama que nos mantém interessados no que vai suceder em todos os momentos. Tudo isso sem abandonar seu estilo visual que sempre lhe foi característico.

Atenho-me nos poucos detalhes que posso dar sobre o enredo, porque se trata de um filme em que, quanto menos saibamos sobre os personagens, melhor. O que poderá ser dito é que a vida do jovem entregador de pizza Víctor Plaza (Rabal) cruzará de maneira integral com o a do policial David (Bardem) e seu parceiro Sancho (Sancho), que mantém sua esposa Clara (Molina) sob sua austeridade. E a de Elena (Neri), a quem Victor fica perdidamente apaixonado após uma única transa – quase anônima - ocorrida num lavabo.

Fatalidade, amor, desespero, medo, redenção, culpa, ciúmes, ira e prazer. São somente alguns elementos que Almodóvar utiliza em um único filme para manter seus espectadores sempre ligados. E não faz feio. Num enredo praticamente perfeito, o único momento em que nos damos conta de que estamos fora daquela história se dá nas passagens em que tiramos lições para as nossas próprias vidas. Sim, isso é possível, afinal, um filme no mínimo competente deve nos proporcionar esse auto-diálogo, nos fazendo refletir, sem precisar que nos desinteressemos pelos personagens da obra.

Impressionamos-nos com o tamanho minúsculo do espaço histórico do filme. São moradores de Madri que têm as suas vidas cruzadas de uma forma orgânica, limpa. A partir daí, são laços. Um se dando conta que a vida do outro pode ser remediável, mas jamais a sua própria. E mesmo sem eu ter falado uma das grandes questões do filme, é pertinente buscar saber o que seria a culpa no contexto da história. Culpa essa que vai passando de mão em mão. De caso em caso. Os personagens proporcionam ótimos diálogos. Em um deles, podemos ver o personagem de Javier Bardem (ainda pouco conhecido e simplesmente fantástico) questionando o amor de sua esposa, dizendo que ela possui “uma sinceridade que chega a ser insultante”, e que por conta disso, vai continuar explorando a culpa que ela sente. Vale dizer que esse detalhamento faz muito mais sentido para quem já assistiu ao filme.

Almodóvar, mesmo em terras recém exploradas – o drama escancarado – não abre mão de seu talento estilístico. A cena do parto no ônibus, com tomadas distanciadas, é exemplo da qualidade técnica do diretor, além dos momentos de sexo tórrido, onde são vistas somente as silhuetas dos atores. As cores berrantes estão mais contidas, mas a boa trilha sonora e a homenagem que ele faz à força feminina estão bem vivas. Dessas mulheres fortes, uma delas é encarnada por Penélope Cruz, numa ligeira participação, interpretando a mãe de Victor (anos mais tarde, a parceria com Almodóvar seria mais bem trabalhada em “Abraços Partidos”).

É chato dizer sempre que um filme é excelente somente por conta do seu diretor/criador. Mas no caso de “Carne Trêmula”, depois da experiência de assisti-lo, não tem como fugir desse tipo de elogio.