quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Onda [2008]


(de Dennis Gansel. Die Welle, Alemanha, 2008) Com Jürgen Vogel, Frederick Lau, Jennifer Ulrich, Jacob Matschenz, Elyas M'Barek. Cotação: *****

Como exemplo pedagógico fundamental para qualquer pessoa ligada ao ramo da educação, “A Onda” surge como um filme obrigatório para conhecer de uma forma tão eficaz qual o papel do docente na transposição da História para o ensinamento e saber até onde seu sistema de ensino pode chegar quando levado ao extremo. Interessante também para jovens em geral, para terem contato com o verdadeiro aprendizado do que são ideologias, conhecendo suas principais características, funcionamento e, o mais importante, suas conseqüências. E claro, para pessoas em geral (independente de serem educadores ou alunos) para ter noção do que é (dentre tantos outros temas) talvez um grande mal da sociedade: a intolerância.

O professor de História do ensino médio Rainer Wenger (Jürgen Vogel) foi ,contrariado, dar um curso sobre aristocracia, quando seu maior desejo era lecionar sobre anarquia (as matérias sendo eletivas já demonstram uma característica do sistema de ensino alemão). Para sua surpresa, seu curso é bastante requisitado, porém, ele luta para manter a apreensão dos seus alunos. Querendo exemplificar da melhor forma o que é o cerne da tal aristocracia, ele resolve simular essa forma de governo, se intitulando líder dos alunos, que passam a ser seus subordinados. Apesar do estranhamento inicial, a maioria dos alunos abraçam a idéia, porém, uma ideologia levada tão a sério acaba levando às conseqüências trágicas, e em uma semana, Wenger vê que a situação fugiu completamente de seu controle. A história é baseada numa história real, ocorrida na Califórnia, em 1967.

De uma maneira geral, a aristocracia é uma forma de governo onde o líder máximo do Estado detém o total controle de todas as camadas governamentais e exerce grande dominação através de vários mecanismos de poder, como a execução em massa do grupo que for contra seus preceitos e o nacionalismo exacerbado. Um dos exemplos mais vivos da história contemporânea é Adolf Hitler, líder do partido Nazista, que ficou a frente da Alemanha de 1934 até 1945. E é ainda mais importante ressaltar que, por se tratar de uma produção alemã, as referências ao nazismo são vistas repetidas vezes ao longo do aprendizado dos alunos. Portanto, é preciso estar ciente do que se trata o tema (o que não é um grande obstáculo).

Os alunos absorvem a idéia da autocracia de forma bem interessante. Os jovens em geral estão extremamente absortos, em constante crise de identidade e exatamente por isso, são mais passíveis às variadas ideologias. Quando se trata de autocracia, a coisa é perniciosa por envolver ideais de comunidade e sua autopreservação. Adotando o lema “Poder pela disciplina” e intitulando o movimento de “A Onda”, eles passam gradativamente a levar a sério demais a doutrina adotada, sempre incitada pelo professor. A camisa branca passa a ser o uniforme oficial dos integrantes para elucidar a imagem de comunidade, o símbolo passa a tomar grande valorização e a saudação é praticamente obrigatória para o reconhecimento dos novos “camisas brancas”. Com essa valorização extrema, eles passam a divulgar essa nova filosofia alastrando o símbolo até nos patrimônios públicos, confrontando até mesmo os anarquistas.

Os jovens personagens funcionam como a grande cartela para aprofundar a questão da “ideologia levada a extremos” de forma satisfatória. Karo (Jennifer Ulrich), a garota que no inicio do filme era a grande ranzinza da turma por não se adequar na aventura empírica proposta pelo professor Wenger, vê que a evolução desse movimento pode acabar caindo num fanatismo trágico. E ela, então, se torna a subversiva que deve ser aniquilada. Ao justificar suas razões para ir contra ao que ela considera um grande problema, é talvez um dos pontos mais didáticos de “A Onda”. Ela diz para o até então namorado:

- Eu não quero ser tratada como uma leprosa só porque não visto uma camisa branca.
- Por que simplesmente não veste uma? – questiona ele.
- Bem simples: Porque não quero.

Pronto. Está travada a polêmica.

“A Onda” tem um grande valor pelo tema abordado, que levado para outros patamares sociais, ainda pode explicar até mesmo a razão pela qual a grande intolerância religiosa é tão prejudicial à nossa sociedade. São muitos pontos a serem discutidos que convergem numa obra que passou batida por não ter a divulgação merecida. O elenco é um achado. Diferente dos jovens de beleza irreal vistas em filmes norte-americanos, os alemães de “A Onda” fazem o tipo mais esquisito, mais real, eu diria. E o filme só se perde em momentos isolados, quando passa a retratar a crise conjugal do professor Wenger, embora tenha sua importância para a narrativa.

Igualmente válido para estudos pedagógicos e sociológicos.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos [2010]


(de Woody Allen. You Will Meet a Tall Dark Stranger, EUA/Reino Unido, 2010 Com Gemma Jones, Pauline Collins, Anthony Hopkins, Naomi Watts, Josh Brolin, Freida Pinto, Antonio Banderas, Lucy Punch. Cotação: ***

Dando continuidade aos seus constantes e cada vez mais conformados filmes irregulares, Woody Allen ilustra a famosa frase shakespeariana de MacBeth (“(...) A vida é história contada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada”) para versar sobre a infelicidade do homem com o que tem ou que trabalhou para ter. De fato, não é um trabalho digno de uma filmografia elogiável como é a de Woody, e o filme acaba sendo somado como exemplo dos que o criticam para torná-lo um cineasta fracassado. O que as pessoas precisam saber é que, mesmo desajeitado e longe de sua originalidade, Woody Allen ainda é capaz de fazer com que um filme tão despretensioso soe como algo que faz jus a sua própria modéstia.

Isso é um elogio? Sim e não.

É um elogio se levado em consideração a forma cada vez mais leve de filmar suas obras. Ao começar o filme, os letreiros já indicam que estamos vendo mais um filme de Woody Allen. Não há nada que torne “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” algo único e promissor. E acredito que nem é essa a intenção dele. Filmado mais uma vez em Londres (ele consegue financiamento mais facilmente na Europa), ele aproveita a sua reputação para conseguir filmar sua história mesmo sem grandes questionamentos e reunir um bom elenco, mesmo sendo famoso por pagar pouco aos atores. Enfim, como todo ano acontecesse, Woody Allen apresenta a sua história por puro prazer em fazer cinema, e sem dar importância pelo aspecto honroso.

Por outro lado, uma crítica que até nós, fãs de Woody Allen, devemos concordar é quanto ao desleixo que ele apresenta em seus filmes mais recentes. Nesse, algumas faltas são gritantes e impossíveis de fazer vista grossa. Nem me refiro mais à narração em off, que mesmo sendo um recurso ultrapassado e mal usado aqui, já é uma característica usada por Woody há muito tempo.Mas e quanto a rápida conclusão, esquecendo de personagens relevantes (como a prostituta interpretada por Lucy Punch)? E os saltos narrativos deselegantes, repentinos e incompreensíveis? E a ausência de algumas justificativas básicas que fariam muita diferença (como uma garota pode se apaixonar por um cara que assumiu espioná-la enquanto se troca)?

A história se trata de uma discussão sobre o descontentamento humano. Alfie Shebritch (Anthony Hopkins) resolve se separar de sua esposa Helena (Gemma Jones) por estar em crise de meia idade. Ele vai correr atrás de sua juventude se casando inclusive com uma aspirante atriz bem mais jovem que ele. Ela buscará ajuda espiritual numa cartomante, acreditando que triunfará e conhecerá o homem dos seus sonhos. A filha deles, Sally (Naomi Watts), vai trabalhar numa galeria de arte e acaba flertando com seu patrão, Greg (Antonio Banderas), enquanto o marido de Sally, Roy (Josh Brolin), tenta concluir seu romance e repetir o sucesso editorial de seu primeiro livro, e acaba se apaixonando pela mulher do prédio em frente do seu, a doutoranda Dia (Freida Pinto).

Woody Allen é um diretor que hoje faz filmes pelo prazer de ser um cineasta ativo. Não tenho como saber quando ele nos mostrará algo genial novamente, muito menos se isso pode acontecer tão cedo. Mas devo admitir que “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” é uma delícia de ser assistido, pelo menos até o desfecho desastroso. Não está nem perto de ser uma obra-prima, mas seria humanamente impossível manter filmes excepcionais quando se tem um diretor/roteirista lançando seus filmes ano a ano. O cálculo é simples, quanto mais filmes, maiores serão as cobranças.

Entretanto, quando se trata de Woody Allen, o que nos é apresentado já é algo, no mínimo, bom de ser assistido e agradará uma boa parcela de público.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Persepolis [2007]


(de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi. Persepolis, França, 2007) Com vozes de Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Danielle Darrieux, Simon Abkarian, Gabrielle Lopes Benites. Cotação: *****

“Tinha perdido alguns dos meus familiares em uma revolução. Tinha sobrevivido a uma guerra. E foi uma banal história de amor que quase me matou.”

Essa frase tão simples a primeira vista é um exemplo escolhido a esmo como resultado de algumas reflexões que a personagem - e também autora - da obra foi capaz de conceber. Através de uma animação bem elaborada, a adaptação da graphic novel homônima e autobiográfica de Marjane Satrapi já é um filme completo. Com subdivisões muito bem reconhecíveis, é possível ver sua evolução como mulher em meio às turbulentas transformações políticas, sociais e religiosas do Irã.

Narrado em off por meio de suas memórias, Marjane (com voz de Chiara Mastroianni em idade adulta, e de Gabrielle Lopes Benites quando criança) apresenta sua infância no Irã, em 1978. Em seu contexto histórico, o país passava por uma série de manifestações populares que exigiam a renúncia do Xá Reza Pahlavi, tido como um dos maiores ditadores dali. Em meio a isso, a pequena Marjane, de apenas nove anos, se sente atraída pelos assuntos políticos por conviver juntamente com uma família composta de intelectuais de esquerda. De acordo com que vai crescendo, ela se sente cada vez mais subversiva, atraída pelos gostos ocidentais. Já na adolescência, seus pais decidem mandá-la para a Áustria, onde ela tomará contato com os costumes europeus e refletir sobre suas inquietudes, que culminará não só em seu retorno ao país de origem, mas também iniciará uma série de desenvolvimentos que determinará seu futuro.

A começar pelo estilo de animação, que foge completamente das produções mais causais do cinema atual, "Persepolis" adota o velho e infalível sistema em 2D que não impede o embarque no clima. Muito pelo contrário. O desenho de produção talvez seja o maior charme do longa por manter uma familiaridade direta com o trabalho do cartunista francês Vincent Paronnaud, que divide a direção da obra junto a Marjane Satrapi.

No primeiro ato, é importante analisar toda a apresentação histórica ilustrada na tela. Falar de política do Oriente Médio definitivamente não é um assunto muito degustável, e passar para os expectadores uma verdadeira dramatização nesse estudo de 1979 sem que isso pese negativamente foi um grande feito. Nesse recorte, o Irã passava pela iminente derrubada do Xá, porém, quando os iranianos pensavam que estariam livres de uma política que tivera participações da América e Inglaterra financiando esse poder através de barganhas de olho no mercado petrolífero, começaria outra fase: a dos aiatolás. As garotas seriam obrigadas a usar o véu islâmico e os rapazes a servir o país. E a guerra com o Iraque de Saddam Hussein também foi mostrada. Boa parte dessa verdadeira aula de História (em versão mais dinâmica e entendida) foi apresentada de maneira simples e intencionalmente didática pelo pai da personagem.

Sua passagem para Europa marca outra virada. Dessa vez mais introspectiva, talvez pelo sentimento de culpa que Marjane sente por ter a oportunidade de viver, de certo modo, tranqüila, enquanto seus pais ainda vivem em um verdadeiro campo de batalha. O fato é que o mundo europeu traz a ela vivências inesquecíveis. Das amizades com outras tribos à descoberta do amor. E essas mudanças se potencializam quando percebe a própria mudança corpórea por conta da puberdade. Por sinal, a seqüência onde ela narra essa mudança e outra onde ela reconta seus momentos com um garoto após passar por uma decepção (mudando um pouco as descrições dele) são geniais.

Já mulher e de volta ao Irã, Marjane demonstra ser uma pessoa completa. E é esse caminho para o amadurecimento que será delineado "Persépolis". Claro, com os devidos cuidados visuais e um bom humor que ganha a simpatia de qualquer um. Difícil não se encantar com a ingenuidade de uma garotinha que tem que interpretar o que é a esquerda, República, monarquia, anarquismo, niilismo, etc. Fora a sua imaginação que é capaz de conceber uma conversa entre Deus e Marx, e sua inclinação punk capaz de usar uma jaqueta com a inscrição “o punk não morreu” e comprar k-7 do Iron Maiden no mercado negro. E são essas particularidades que fazem de "Persepolis" uma deliciosa animação que mereceu todos os elogios e premiações que levou.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Um Lugar Qualquer [2010]


(de Sofia Coppola. Somewhere, EUA, 2010) Com Stephen Dorff, Elle Fanning, Chris Pontius, Erin Wasson, Angela Lindvall. Cotação: *****

Podem falar o que quiserem, mas eu sou um fã confesso de Sofia Coppola. Posso perdoar até mesmo “Maria Antonieta”, que muitos se uniram na grande vaia que recebeu em Cannes em 2006. Dizem até que ela jamais alcançará novamente o reconhecimento que a elevou em “Encontros e Desencontros” (2003), se é que muitos reconheçam a qualidade deste filme. O fato é que em “Em Qualquer Outro Lugar”, Sofia se utiliza de boa parte dos ingredientes temáticos que utilizou nesses seus dois outros filmes, escrevendo e dirigindo uma obra que se compromete a discutir a descoberta de um "eu", feito por um astro inserido numa indústria que ela conhece como ninguém: a de Hollywood.

O ator de filmes de ação Johnny Marco (Stephen Dorff) está em fase de divulgação do seu mais novo filme. Hospedado num luxuoso hotel de Los Angeles, ele convive em meio a bebedeiras, festas e muitas mulheres. Aliás, ofertas por sexo casual é o que não lhe falta. Mas o que ele ainda não percebeu claramente é que uma vida desregrada o envolve de tal maneira que não lhe incomoda o fato de ser alguém que não sai de um ponto dado na vida (a metáfora com o carro na primeira tomada do filme é clara). Até que as visitas de sua filha de onze anos, Cleo (Elle Fanning) e seu crescente envolvimento com ela farão com que ele passe a analisar essas questões inerentes à sua existência. Entre idas à Itália para lançar seu filme e várias outras obrigações profissionais, Johnny começa, aos poucos, a perceber que, apesar de atarefado, sua vida está situada em um imensurável vazio.

O filme teve uma enxurrada de críticas o comparando a “Encontros e Desencontros”. São inegáveis as semelhanças, reconheço. Os dois retratam a apatia dos seus protagonistas, ambos famosos, tendo que lidar com o assédio de fãs e imprensas em países diferentes (um no Japão, outro na Itália), se envolvem emocionalmente por uma jovem que os farão olhar para si mesmos (um por uma desconhecida num hotel, outro pela filha) e estão também ambos situados na ociosidade, vivendo em hotéis cercado por pessoas, mas que dependendo da situação, estarão sozinhos e sem ter com quem contar.

Mas “Em Qualquer Outro Lugar” demonstra diferenças peculiares principalmente na mão profissional de Sofia, que está mais madura e compenetrada na desconstrução de seu personagem principal. As tomadas, embora continuem com seu retrato característico, estão mais capacitadas a levar os espectadores a inferirem o que está acontecendo. Não se trata de um mergulho complexo e psicológico do personagem. A leitura é facilmente alcançada porque Sofia faz com que sua câmera se torne presente nas cenas. Não é preciso muitos diálogos e ações se atropelando. Basta contemplar as posturas e as nuances dos personagens falarão por si só.

O elenco está absolutamente confortável em cena. É nítido. Stephen Dorff tem aqui a sua chance de ouro num papel de suma importância que ele nunca antes fez algo parecido. Por estar extremamente à vontade e não ser, profissionalmente falando, um ator muito empenhado, ele pouco investe ou se dá conta de sua importância nas situações, já que ele está presente em praticamente todo o filme (ao contrário do que acontece com Bill Murray, que dividia a responsabilidade com Scarlett Johansson em “Encontros e Desencontros”). Elle Fanning - irmã quatro anos mais nova de Dakota Fanning - é uma graça. Não chega a surpreender, mas também não compromete em nada, sempre bem entrosada com Dorff.

Abusando do charme do seu cinema, que já lhe é característico (apesar de ser ainda seu quarto longa), Sofia continua em alta comigo. Ela é uma das poucas diretoras americanas de sua geração que namora de forma convincente com o cinema europeu sem parecer ter saído de sua realidade. Por ter vivido sempre nesse nicho, Sofia já sabe como funciona o lado profissional e festeiro de Hollywood. Ironiza as pseudo-celebridades e a imprensa sempre muito previsível (ao mostrar numa coletiva um jornalista lançando a clássica pergunta “Quem é Johnny Marco?” feita para o próprio). Querendo ou não, a pergunta do cidadão colabora bastante para a grande questão do filme, que até termina de forma questionável, mas sem desmerecer esse mais novo e interessante filme de Sofia Coppola, ganhador do Urso de Ouro no Festival de Veneza do ano passado (uma vitória questionável por ter Quentin Tarantino, seu ex-namorado, como presidente do Júri).

Críticas de terceiros à parte, "Em Qualquer Outro Lugar" traz Sofia Coppola firme como uma profissional de talento inconfundível, que jamais se esconde atrás do seu sobrenome privilegiado.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Contra Corrente [2009]


(de Javier Fuentes-León. Contracorriente, Peru, 2009) Com Tatiana Astengo, Manolo Cardona, Cristian Mercado. Cotação: ****

Ver um filme como esse “Contra Corrente” estrear em salas brasileiras já é uma grata surpresa. Além de uma ótima (e infelizmente rara) oportunidade de assistir uma produção peruana sendo exibida por aqui (apesar do surpreendente crescimento de qualidade), o filme contém uma história desafiadora que irá contrastar a sutileza de um amor homossexual com traços de um romance espiritualista. E mostra de uma maneira serena, como um meio social é capaz de definir os rumos de um amor como esse. Não é militante, nem exageradamente meloso. Muito menos apelativo. É um bom filme que agradará não só seu público alvo, caso não sofra a antipatia dos mais puritanos.

Numa humilde vila de pescadores no Peru, Miguel (Cristian Mercado) está prestes a ser pai. Sua esposa Mariela (Tatiana Astengo) espera o primeiro filho deles, mas Miguel mantém um romance às escondidas com o pintor Santiago (Manolo Cardona), um homem misterioso e mal visto na vila. O amor é nítido e apesar de Santiago querer levar adiante essa história, Miguel está acomodado com o verniz social, preferindo se esconder atrás de sua família em formação. Após a morte por afogamento de Santiago, Miguel passa a receber constantes visitas de alma do amado, que só descansará quando seu corpo for encontrado e ofertado (apresenta-se aí um aspecto cultural). Mas as constantes desconfianças dos hostis moradores daquela região poderão culminar em sérias conseqüências.

Agraciado pela crítica e muito bem recebido em festivais internacionais (foi ganhador do prêmio popular em Sundance), “Contra Corrente” nos pega de surpresa pela simplicidade apresentada, mesmo contendo uma abordagem subversiva. Pela primeira vez a frente de um longa metragem, o diretor Javier Fuentes-León consegue engrenar uma boa história, muito bem ambientada no lugar onde se passa a história, respeitando as premissas e surpreendendo na narrativa, afinal, aceitar uma história onde um fantasma acompanha uma pessoa sem evidenciar a impossibilidade disso acontecer, e mais, nos fazer aventurar-se nessa proposta, não é um feito fácil de ser conquistado. Quando se trata de um filme simples (mesmo sendo financiado por países como França e Alemanha), isso pode acarretar numa singularidade tamanha que só poderia cair nas graças de um público mais restrito.

Uma recepção maior por parte do público geral só aconteceria caso houvesse um respeito por parte das distribuidoras e pelos próprios produtores, que acabaram por vender o filme ao mercado mais underground do público gls. Isso é válido, pois está absolutamente no contexto homossexual, mas como disse, isso acaba o tornando uma fita movida pelo seu próprio público alvo e muitas vezes ignorada pelo público em geral. Fica a cargo dos cinéfilos, críticos ou recomendações boca-a-boca, a possibilidade de ajudar na divulgação de um filme que é agradável, sem grandiosidade, mas nem por isso descartável.

É um belo exemplar apresentado por um país que vem crescendo gradativamente no ramo e que alça vôos cada vez mais audaciosos. Merece palmas.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Mildred Pierce [TV - 2011]


(de Todd Haynes. Idem, EUA, 2011) Com Kate Winslet, Brían F. O'Byrne, Melissa Leo, James LeGros, Mare Winningham, Guy Pearce, Evan Rachel Wood, Hope Davis. Cotação: ****

Já não basta ter Oscar, Globo de Ouro, BAFTA, SAG, etc. Kate Winslet, como convicta ambiciosa (no bom sentido) que sempre foi, quer ainda mais. Agora ela se lança na TV a frente de um projeto que confirma a pretensão de nossa Kate. “Mildred Pierce” é, acima de tudo, uma produção feita para ela brilhar, sendo auxiliada por um elenco também promissor. Tudo bem que é uma produção de época, baseada em uma obra literária importante para um contexto amargo aos americanos, e claro, selo HBO de qualidade. Mas a minissérie só me deu uma grande certeza: Kate Winslet é infalível.

Baseado em uma novela homônima do escritor James M. Cain, “Mildred Pierce” narra a saga da mulher que dá nome ao título da minissérie. Abandonada pelo marido em plena Depressão Americana no inicio dos anos 30, com duas filhas pra criar, ela se vê praticamente obrigada a arregaçar as mangas e enfrentar a sociedade para trabalhar e manter sua família, ou o que restou dela. Cozinheira de mão cheia, ela vê que seu talento para a culinária não poderia ser desperdiçada sendo apenas uma garçonete. Então, Mildred, com um forte grau de empreendedorismo, resolve abrir uma franquia de restaurantes especializados em frango e tortas. Sempre ajudada pela amiga Lucy (Melissa Leo), o contador Wally (James LeGros) e até mesmo pelo ex-marido Bert (Brían F. O’Byrne), Mildred tenta triunfar no seu negócio, que possivelmente desagradará a orgulhosa filha mais velha, Veda (Evan Rachel Wood, na fase adulta).

A minissérie, composta por cinco longos capítulos, me chamou a atenção principalmente pela história, imortalizada por Cain e já transportada para o cinema em 1945, num filme intitulado “Almas em Suplícios”, que rendeu à Joan Crawford seu Oscar de Melhor Atriz. Não tenho intimidade com o livro e nem com o filme dirigido por Michael Curtiz, mas pelo que andei pesquisando, a leitura da HBO está mais fiel. O que me surpreende, pois em alguns momentos, considerei que a história estivesse se entregando a uma linguagem mais visual, caricata até. Mas como disse, por não conhecer o livro, é complicado julgar essa parte. E saber que uma série, filme, ou nesse caso, uma minissérie, vai de acordo com sua própria linguagem não é absolutamente algo ruim.

Kate Winslet está esplêndida. Favorecida por cenas nas quais ela pode exacerbar sua visceral interpretação, Winslet em nenhum momento se submete aos atos falhos, a não ser pelo tom exagerado que algumas cenas pediam. Ela esteve à vontade em tudo o que a personagem estava lhe provocando, desde a imponência de uma mulher tendo que enfrentar o sexismo e as dificuldades em vencer numa sociedade economicamente falida, aos momentos de incrível dor maternal, passando, é claro, pelas tórridas cenas de sexo, aqui reservadas principalmente quando Mildred se envolve com o ambíguo galã Monty Beragon (Guy Pearce).

O que mais me incomodou em “Mildred Pearce” foi a virada que a minissérie tomou nos seus dois últimos episódios. Era certo que a relação entre ela e sua filha ainda seria muito explorada, mas a trama co-protagonizada por Veda (que crescida se tornou uma das sopranos mais respeitadas da era do rádio) tomou conta. Não diria que ficou insustentável, até porque contribuiu para um final aceitável, mas diria que fiquei mais envolvido pela luta inicial de Mildred, enfrentando preconceitos de uma sociedade numa fase traumática para os americanos.

Esse tipo de mudança de foco não diminui em quase nada a qualidade de produção de “Mildred Pierce”, que bem poderia ser mais longa. Com a nítida intenção de promover Kate Winslet, agüentar mais episódios de confrontos pessoais e chororô poderia cair num marasmo total. E a boa impressão iria, assim, certamente se esvair.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Assim Me Diz a Bíblia [2007]


(de Daniel G. Karslake. For the Bible Tells Me So, EUA, 2007) Documentário. Cotação: *****

Esse é um daqueles documentários que julgo ser obrigatório para muitas pessoas, porque trata de um assunto social que está inteiramente ligado a muitos casos recentes de violência regidas por questões de homofobia. E foi justamente por conta desses eventos que resolvi escrever sobre esse filme que eleva essa questão sob uma justificativa de cunho religioso. A razão é clara: a homofobia é um mal que é plantado - na maioria das vezes - na Igreja, por aqueles que se dizem os verdadeiros leitores da Bíblia. Enganam-se quem pensa que “Assim Me Diz a Bíblia” uma crítica à religião. Não é esse o ponto. A intenção do diretor é, através de entrevistas com pais de homossexuais, cientistas e líderes religiosos, criticar a forma equivocada como é lida as Escrituras. E como a ignorância e o engano podem trazer a repulsa pelos homossexuais.

A idéia de entrevistar casais que tenham filhos homossexuais e devotos de diversas Igrejas (são católicos, protestantes, luteranos, batistas, etc.) foi muito acertada. Eles são as maiores provas do modo como são feitas as discussões dentro da Igreja em relação à minoria sexual. Nem é preciso ir muito longe pra saber que a Bíblia serviu como uma arma para subjugar negros, judeus e mulheres. E enquanto esses três grupos exemplificados já se encontrão, na maioria das vezes, isentos do ódio que cristãos sentem, sobrou para os gays a dura acusação de serem ou praticarem ABOMINAÇÃO, uma palavra que, de fato, se encontra na Bíblia, mas inserida em um contexto histórico-cultural que os cristãos parecem ignorar completamente. Isso sem contar as interferências de vocabulários e transliterações que são objetos de estudo há centenas de anos. Ou seja, essa tentativa de mostrar que existe uma “leitura errada” da Bíblia não é algo recente, mas é um processo que vem sendo tratado historicamente há muitos anos.

As perguntas iniciais são inevitáveis. “O que diz a Bíblia sobre os homossexuais”, “Os gays terão um lugar reservado no Reino dos Céus?”, “Ser gay é uma escolha?”.

Em Levítico 20:13, lemos : “O homem que se deita com outro homem como se fosse mulher, está cometendo uma abominação”. Transcrevo apresentando o livro e o capítulo de uma passagem que até mesmo muitos dos “defensores da Palavra” não sabem onde estão, nem o que dizem de fato. No filme, há passagens de testemunhos de pessoas que afirmam não saberem onde ou o que está escrito em relação aos homossexuais, mas que sabem que existem repreensões. Alguns até colocam as palavras na boca de Jesus Cristo, que na verdade defendia a máxima de “ame ao próximo como a ti mesmo”.

Ainda em Levítico, em 19:19, lemos “Não use roupas de duas espécies de tecidos”, além de “não comam nada com sangue” (19:26), “Não cortem as pontas do cabelo em redondo e não aparem a barba” (19:27) e “Não façam incisões no corpo por algum morto, nem façam tatuagens” (19:28), e outros ensinamentos ao longo do Velho Testamento que hoje, culturalmente falando, não fazem sentido algum. Por isso é pertinente a questão: Por que os homossexuais ainda sofrem essa discriminação calcada nesses mesmos ensinamentos?

Deve-se levar em consideração que esse livro trata de uma série de instruções para os hebreus, um povo que passava por uma situação delicada, onde se tornava imprescindível o valor da procriação. O sêmen era tomado como um valor de vida. Quem o desperdiçasse (“fazer o sêmen cair por terra”) seria fatalmente castigado. E as mulheres tinham unicamente a função de procriadora. Ou seja, um homem se deitar com outro homem não se apontava como pecado por conta do ato em si, mas como um desrespeito a continuidade da procriação. Também não é visto por aí pais que vendem suas filhas, pessoas que deixam de trabalhar para guardar um dia para santificar sua fé ou se abster de sua riqueza e viver uma vida simples. Muito pelo contrário, o que se vê são pastores que despontam em listas “dos mais ricos e bem sucedidos”, liderando Igrejas que deveriam com justiça unir um “S.A.” junto ao seu nome.

Outro ponto de grande discussão é em relação à Sodoma e Gomorra, duas regiões dizimadas por Deus, que os cristãos julgam ter sido por conta da homossexualidade. A maioria maciça dos teólogos e estudiosos já defende outra causa: a falta de hospitalidade dos habitantes desses dois lugares, que adotaram a medida de se auto-preservarem por querer defender suas riquezas dos “forasteiros”. O ato bárbaro dos soldados daquela região contra dois anjos enviados serviram de estopim para a condenação do lugar. Outros cristãos irão pontuar o uso de “não natural” nas Palavras, mas em uma consulta mais cuidadosa, saberão que os judeus tomavam o “natural e não natural” como “costumeiro e não costumeiro”.

Eu sei que parece trivial apresentar sérios argumentos nesse texto, mas o próprio documentário diz que qualquer estudo mais aprofundado estará nas bibliotecas ao alcance de qualquer pessoa, assim como as pesquisas de vários órgãos ligados à psicologia, que não mais toma a homossexualidade como algo contornável, muito menos como uma escolha. Imprimir essa idéia de “escolha” e mandar um gay para a regeneração poderá causar sérios danos psicológicos ao indivíduo, que faz parte de uma dura estatística: ele está 3 a 7 vezes mais propensos ao suicídio.

O documentário ainda alça vôos para fora da questão bíblica para explicar a violência que muitos machistas têm em relação aos gays, sem necessariamente se utilizar da religião. O exemplo de um treinador humilhando seus atletas ou um sargento aos seus soldados, querendo diminuí-los como “mulherzinhas, garotinhas, etc”, já aponta a não aceitação que o homem tem ao ser comparado a uma mulher. O ódio para com a figura feminina pode comprometer o julgamento desses homens, que sofrem de misoginia e vêem no gay uma ameaça a ser combatida. (É certamente por esta razão que homens aceitem com mais facilidade a mulher homossexual).

Mas “Assim Me Diz a Bíblia” não é apenas argumentos e contra-argumentos. A boa montagem do filme e a eficácia dos depoimentos formam um conjunto muito bem apresentado. Há testemunhos de James Dobson, primeiro bispo abertamente gay da Igreja Episcopal, que enfrentou sérias ameaças de morte e acusações infundadas de atos libidinosos; o ex-deputado Dick Gephardt, que em sua campanha assumiu a filha lésbica e deu uma aula do que é o amor incondicional; e a ativista Mary Lou Wallner, que perdeu sua filha por conta de um suicídio após sérias discussões com sua mãe que não aceitava sua sexualidade.

São belas histórias de pessoas que tentaram lutar contra sua própria natureza, por serem oriundas de famílias que estavam totalmente inseridas nos valores de suas respectivas religiões. Ouviam e parafraseavam os pastores que liam as Palavras de forma literal. E essa leitura literal da Bíblia é notadamente uma semente danosa para o julgamento da sociedade, capaz de proferir guerras, culminar um apartheid, e dizimar um grupo de pessoas. O filme também não livra a cara da mídia que insiste em vender a imagem estereotipada de gays como homens afeminados ou mulheres masculinizadas.

É um documentário que faz questão de educar apresentando fundamentos, e se torna assim necessária para toda a sociedade. Para ser assistido e discutido. Elementos para isso, “Assim me Diz a Bíblia” dará até mais do que suficiente.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Machete [2010]


(de Robert Rodriguez. Idem, EUA, 2010) Com Danny Trejo, Robert De Niro, Jessica Alba, Steven Seagal, Michelle Rodriguez, Jeff Fahey, Don Johnson, Shea Whigham, Lindsay Lohan. Cotação: ***

Robert Rodriguez pode não ser um cineasta notável. Ele não é original em seus projetos, se aproveita de situações até mesmo grosseiras para apresentar seu trabalho e não tem um mínimo de evolução na carreira que já dura quase vinte anos. Mas ele se diverte como um garoto que acaba de descobrir uma câmera e almeja produzir suas histórias de forma amadora, homenageando o que sempre gostou de assistir. Nisso, ele faz como ninguém, mesmo que longe de alcançar seu colega e amigo, Quentin Tarantino. 

Machete (Danny Trejo, espetacular) é um ser que vaga pelo Texas, próximo da fronteira com o México. Três anos antes, ele perdeu sua família e foi dado como morto pelo traficante mexicano Torrez (Steven Seagal, em seu primeiro papel como vilão). Sua figura bruta e mal encarada chama atenção da agente de imigração Sartana Rivera (Jessica Alba), que policia a fronteira junto ao trailer de tacos de Luz (Michelle Rodriguez). Machete é procurado por Michael Booth (Jeff Fahey) para armar um atentado contra um candidato a senador, o racista John McLaughlin (Robert De Niro), mas acaba sendo vítima de uma cilada política. Sedento por vingança, Machete se junta à rede de imigrantes de Luz para encontrar os homens que se meteram com ele.

Baseado no homônimo trailer falso visto no projeto "Grindhouse", que Rodriguez lançou ao lado de Tarantino, e composto pelos filmes "Planeta Terror" e "À Prova de Morte", "Machete" teve um bom recebimento por parte dos fãs. Um herói atípico como Trejo poderia render material para um filme de verdade. Numa época onde Sylvester Stallone brinca de Rambo e Rocky Balboa, mesmo estando completamente desfigurado, um herói mexicano que escolhe uma arma branca - nesse caso um facão ao invés de metralhadoras e pistolas - é uma novidade em tanto.

Mas como dizem os mais pessimistas: Nem toda boa idéia deve ser insistida.

A história do filme, bem, pouco importa. O que vale é a verdadeira homenagem ao cinema exploitation e as bizarrices que só encontramos nos filmes de Rodriguez, como Machete usando um intestino como se fosse uma corda de aproximadamente dezesseis metros. Impossível imaginar a cena sem ter assistido. Aliás, a figura do herói é o principal trunfo do diretor. Danny Trejo, sempre muito bem em participações especiais (como esquecer o Tortuga de "Breaking Bad"?), e agora pela primeira vez a frente de uma produção hollywoodiana, ele parece se divertir muito encarnando o chicano.

Outro que está muito bem é o veterano De Niro, que dá vida a um político capaz de chamar os imigrantes latinos de “parasitas”, e fazendo um esforço para se tornar um mártir com sua bengala forjada e um sotaque texano puxado. Deu tempo até para entrar em um táxi, de uma forma que me remeteu diretamente ao inesquecível Travis Bickle de "Taxi Driver". O filme tem outros pontos que chamam a atenção. Além da nudez rápida de Jessica Alba, a barriga devidamente em forma de Michelle Rodriguez, Steven Seagal enorme (e canastrão como sempre), ainda é possível ver Lindsay Lohan interpretando nada menos que... a si mesma!

De visual propositalmente amador, com os riscos na película e cortes abruptos, o tom satírico sempre presente e um humor visual que cansa tamanha utilização em um curto período de tempo, "Machete" se desfaz no divertimento bagaceiro. E Robert Rodriguez pouco dá importância se seu trabalho vai ser levado a sério ou não. O que sobrevive é sua alma aventureira e esbanjar privilégio por fazer seus filmes “amadores” tendo um bom dinheiro para financiá-lo e bons atores que topam embarcar na diversão.

sábado, 2 de abril de 2011

Tudo Pode Dar Certo [2009]


(de Woody Allen. Whatever Works, EUA, 2009) Com Larry David, Adam Brooks, Carolyn McCormick, Evan Rachel Wood, Patricia Clarkson, Ed Begley Jr., Christopher Evan Welch. Cotação: ***

Dando continuidade aos seus costumeiros lançamentos de filmes anuais, em 2009 Woody Allen lança “Tudo Pode Dar Certo”, filme que nos remete diretamente aos seus trabalhos de anos anteriores por contar com uma série de críticas enviesadas sobre religião, sexo, intolerância, amor e outras questões que só um cineasta tão genial poderia discutir em apenas uma de suas obras. Dessa vez, seu alter-ego é transportado para a figura de Larry David, conhecido pela série de comédia “Curb Your Enthusiasm” e que se mantém até honesto na abordagem do que Allen propõe. Infelizmente, o roteiro de “Tudo Pode Dar Certo” talvez seja o único ponto valorizado no filme. O que se vê é um Woody Allen desacreditado na beleza que ele acreditava ver em Nova York, e nos faz consentir de que o melhor a ser feito talvez seja ele voltar-se novamente para a Europa.

Boris (Larry David) é um extremo hipocondríaco. Ex-professor de Física na Universidade de Columbia, ele foi capaz de desfazer seu casamento com Jessica (Carolyn McCormick) porque tudo estava acontecendo de forma muito perfeita. Após uma tentativa fracassada de suicídio (que lhe rendeu uma perna manca), ele ganha a vida ensinando xadrez para crianças que ele menospreza. Até que em um dia aparentemente comum, aparece em sua porta a jovem Melody Celestine (Evan Rachel Wood), uma garota que fugiu da casa dos pais em Mississipi e fora tentar a vida em NY. Mesmo contra sua vontade, Boris acomoda a garota em sua casa, e depois de algum tempo convivendo com os ataques de pânico e a natureza ranzinza de Boris, Melody acaba revelando que está apaixonada por ele.

Eu não sei se Allen já se considera velho demais para atuar em seus filmes, mas o fato é que Boris seria tipicamente interpretado por ele. Descobri que o roteiro do filme foi feito ainda nos anos setenta, sendo produzido quase três décadas depois. Isso explica a familiaridade com muitas coisas. Até o jeito de gesticular lembra muito a composição de Allen e muitas vezes as idéias do personagem eram apresentadas quase como um megafone do diretor, que se utiliza até de um diálogo direto com os espectadores para exercer seu discurso clássico que muitos chamam de verborragia. Não, não se trata disso por um simples fato: Allen não busca fazer discursos vazios. Tudo nele, por mais despretensioso que seja, possui um conteúdo a ser instigado, salvo raríssimas exceções.

Como filme, “Tudo Pode Dar Certo” não é nenhuma pérola e se soma aos muitos títulos regulares que Woody Allen lançou na década de 2000 (vale lembrar que nessa mesma década teve o genial “Match Point” e o ótimo “Vicky Cristina Barcelona”). São poucos os atributos que o torne algo incrível, a não ser, é claro, o roteiro que muitas vezes ameaça ser algo bem inspirado, mas forçado a ser um filme ambivalente, as boas tiradas allenianas ficam reduzidas a poucos momentos. Ali, pulverizadas.

O filme melhora bastante quando entra em cena Marietta (Patricia Clarckson) e mais ainda com a entrada de John (Ed Begley Jr), ambos os atores são incríveis e serão inevitáveis para o exercício da principal questão que Woody quer apresentar, ou seja, em como as amarras da convenção pode limitar as pessoas. Nesse caso, Marietta é uma mulher que se acha o centro de discussões das mulheres em clubes de livros. No seu modo de vestir, na surpresa ao ver que a filha se casou com um homem mais velho e na antipatia por Boris. Pouco tempo depois, ela percebe que o tempo em que viveu casada a impossibilitou de produzir seu talento fotográfico e dar vazão à sua liberdade sexual.

E John, com toda sua visão religiosa ultrapassada e desajeitada, chega a pedir perdão por tudo o que cometeu. Sua pequenez mental ao se deparar com um homossexual convicto reserva talvez a melhor surpresa do filme, que quer passar justamente essa mensagem para o público, de que muitas experiências tão gratificantes da vida acabam sendo evitadas por conta de convenções sociais, e isso acaba se tornando uma perda drástica.

Mas Woody Allen já não tem mais a disposição de pegar suas boas idéias e torná-las ingredientes de um trabalho memorável. Sua despretensão é elogiável e é isso que o torna o meu cineasta preferido. Seus filmes atuais não precisam ter a excelência de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, ou pra citar um exemplo mais recente, as nuances de “Match Point”. Allen hoje faz filmes para se (e nos) divertir, e isso eu sempre digo. Não importa se o resultado foi bom ou ruim (as cotações são apenas ilustrativas). Quando se trata de Woody Allen, pelo menos uma idéia bem sacada é possível encontrar em seus filmes.